Colunista - Rinalme Emiliano

E as almas passeiam!

E as almas passeiam!
  • Rinalme Emiliano

No imaginário popular, é comum o relato de "almas penadas", espíritos de pessoas que morreram de forma trágica, por suicídio ou ainda com assuntos inacabados. A religiosidade popular alimenta a crença de que essas almas aparecem para pedir orações, velas ou para transmitir recados.

Nesse contexto, observa-se que a forte tradição oral, mesmo com todas as mudanças culturais, mantém viva a ideia de que as almas se manifestam por meio de avisos do além ou de alertas para determinadas situações.

Assim, na terra do Padre Cícero, perpetuam-se histórias sobre o Santuário São Francisco das Chagas. Uma delas diz respeito ao corredor que circunda a Praça das Almas, onde, segundo relatos, as almas passeiam à noite. Essas almas vagantes seriam de pessoas que contribuíram para a edificação do referido santuário e que, por algum motivo — como uma missão inacabada, morte violenta, suicídio ou pela falta dos rituais adequados após a morte (como velório, missa, enterro digno etc.) —, ainda não teriam seguido para a Mansão Celeste. Será verdade?

É importante saber que o santuário foi construído com a ajuda dos populares. Muitos subiam a colina do Horto e traziam pedras para a edificação do templo. Esses benfeitores da construção tiveram seus nomes inscritos em placas que ficam na parte inferior do Passeio das Almas, bem como no teto do santuário — um ato realizado como forma de perpetuar a memória daqueles que auxiliaram na construção da igreja local. Vale destacar que muitos chegaram a pagar para ter seus nomes inscritos no espaço sagrado.

A igreja foi construída no meio do mato, bem próxima à estação ferroviária. Muitos não sabem, mas o terreno onde foi edificado era, anteriormente, uma roça de mandioca e um pequeno campo de futebol. Pertencente ao Padre Cícero, o terreno foi doado à Diocese de Crato, que, por sua vez, repassou-o aos frades capuchinhos.

Dizem que a construção do Santuário foi uma forma de a Igreja combater o milagre de Juazeiro, implantando, ali, a devoção ao santo franciscano. Será que essa tentativa de combater o milagre do santo nordestino teria feito com que as almas permanecessem vagando pelo Passeio?

Ou, quem sabe, teria sido a marca fatídica no dia da inauguração da pedra fundamental do santuário que impediu as almas de migrar para o céu? Visto que, nesse dia festivo, o Monsenhor Juviniano Barreto, vigário da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, foi assassinado a facadas durante o evento.

Um fator relevante — e que pode  ser a razão das almas continuarem penando — é o fato de que a matéria-prima da estátua de São Francisco, que fica no centro da praça, foi obtida por meio de uma campanha realizada junto aos moradores da cidade de Milão, na Itália. Na ocasião, foi solicitado que os donos de túmulos doassem objetos com liga metálica, como crucifixos, jarras e letras, que foram derretidos para a confecção de duas imagens: uma ficou na cidade italiana e a outra foi enviada para a terra ciceropolitana.

E as almas passeiam!

Será que, por conta do material fúnebre proveniente dos túmulos italianos, as almas continuam vagueando na praça do santuário?

Diante disso, é importante compreender que as almas penadas representam muito mais do que medos coletivos: são um espelho da cultura, da fé e da imaginação de um povo. Elas carregam memórias, traumas e lições transmitidas entre gerações — um elo entre os vivos e os mortos, o real e o sobrenatural —, ajudando a contar a história de forma viva.

Rinalme Emiliano

Rinalme Emiliano

Colunista de Cultura & Música